Desse texto legal se depreende que os legisladores sorocabanos, que refletiam a mentalidade da classe dominante, conheciam da existência da capoeira e que a mesma era (ou poderia ser) praticada por brancos e negros, homens livres e escravos; não sendo, portanto, exclusividade de uma classe específica.Outro aspecto importante é que a prática da capoeira já estava relacionada com o aspecto lúdico, eis que era conhecida como jogo, embora fosse reconhecida como luta conforme explicita o próprio texto da lei: “...ou qualquer outro gênero de luta...”. Também é interessante notar que a intenção de punir era irrestrita (não obstante as punições aos homens livres fossem mais brandas), o que pode significar que a prática da capoeira era considerada nociva não somente porque dela poderia se utilizar o escravo a fim de combater a opressão. Desse modo é questionável até mesmo a concepção de que a capoeira tenha servido exclusivamente de luta do escravo pela sua libertação.
As leis municipais de Sorocaba repressivas à prática da capoeira continuaram sendo editadas nas Posturas Municipais durante as décadas subseqüentes. Em 1865 o tópico referente à proibição da capoeira figurou no artigo 127:
“Toda e qualquer pessoa que em praças, ruas, ou outro qualquer lugar exercer o jogo denominado capoeiras, ou qualquer outra luta, será multado em 4$ e dois dias de prisão [2]”.
O texto mais sucinto e genérico não discrimina os participantes do jogo da capoeira, nem mesmo distingüe a penalização, permanecendo, no entanto, a concepção da prática como jogo. Em 1871, o artigo 73 do Código de Posturas da Cidade de Sorocaba apresenta o seguinte texto: Em 1871, o artigo 73 do Código de Posturas da Cidade de Sorocaba apresenta o seguinte texto:
Jogar capoeiras ou qualquer genero de luta em publico: penas, 4$ de multa e 2 dias de prisão”.
Já em 1882 o termo “capoeiras” deixa de figurar no texto legal:
“Art. 72. É prohibido jogar pelas ruas e lugares públicos qualquer espécie de jogos ou luta, os infractores incorrerão na multa de vinte mil réis e cinco dias de prisão”.
A imprensa sorocabana do século XIX registrou inúmeros eventos relativos a valentões e desordeiros, algumas evidências a lutas, sem que houvesse, entretanto, uma descrição clara desses eventos e que indicasse nomes de capoeiristas. Uma notícia interessante, colhida no Diário de Sorocaba, em 1887, diz:
"Carteira da Polícia À ordem do sr. delegado de polícia, foi a 16 do corrente recolhido à cadeia João de Almeida, vulgo Brizolla, por provocar desordens.
— À mesma ordem, no mesmo dia e pelo mesmo motivo foi recolhido o preto Antônio José da Silva, que trouxe mais agravante de, no corredor do mosteiro de São Bento fazer um grande rolo.
Ahi está no que dão os valentões" [5]. A palavra rolo, que os dicionários atuais apresentam como sendo s inônimo de confusão ou perturbação da ordem, era, no século XIX, comumente associada a tumultos provocados pelos capoeiras ou por suas maltas. Artur Azevedo, na opereta O barão de
Pituaçu, narra a conversa de um capoeira:
José: — Não é partido político, não sinhô. Como político, eu sou republicano. É partido de capoeirage. Eu sou guaiamu.
Bermudes: — Tu é o quê, moleque do diabo? José: — Guaiamu, legítimo guaiamu, de princípios. Esse partido é a facção mais adiantada da flor da gente. Quando houver rolo, hei de convidar o Sinhô Bermudes.
Bermudes: — Apois. José: — Verá como eu sei entrar bonito. (Fazendo uns passes de capoeira.)
Bermudes:— Pra lá, moleque!
A mesma conotação parece ter a palavra rolo em Pernambuco, no século XIX, segundo a informação de Mário Sette:
Acompanhando o desfile das bandas musicais do Recife desde os primeiros anos da segunda metade do século XIX, o nosso capoeira era, no dizer de Mário Sette, figura obrigatória à frente do c onjunto "gingando, piruteando, manobrando cacetes e exibindo navalhas. Faziam passos complicados, dirigiam pilhérias, soltavam assobios agudíssimos, iam de provocação em provocação até que o rolo explodia correndo sangue e ficando os defuntos na rua". (Recife, Pernambuco, 2004).
No começo do século XX as notícias sobre desordeiros e indisciplinados (neste último caso, soldados – das armas ou da polícia), armados de navalhas é constante. A navalha, segundo Melo Morais Filho, era uma das armas preferidas pelos capoeiristas. A navalha e um cacete, que nunca excede de cinqüenta centímetros, preso ao pulso por uma fina corda de linho, eram-lhe as armas prediletas, nunca fazendo uso das de fogo.
Dentre as notícias de portadores de navalha, como arma, há a de um soldado “indisciplinado” que foi preso em Sorocaba. Eis a notícia:
"Indisciplinado
Hontem, pelas 4 e 45 da tarde o praça do destacamento local de nome Francisco Cândido dos Santos, nº 111, da 4ª Companhia do 3º batalhão, sendo reprehendido pelo Commandante, revoltou-se contra este e, puchando por uma navalha, desafiou a todos que o prendessem. O Commandante, então, ordenou sua prisão o que foi conseguido a muito custo.
O soldado Marcos Antônio Moreira foi ferido com uma navalhada pelo soldado indisciplinado. O sr. dr. Delegado fez lavrar auto de prisão em flagrante e vae instaurar o competente processo" [8].
Na década de 1920 as notícias sobre a capoeira em Sorocaba aparecem com mais clareza, informando, com alguns detalhes, sobre a existência do jogo e da prática dessa luta. Uma das publicações nos jornais sorocabanos alerta para a existência de um barbeiro no início do século XX, cujo salão estava localizado na rua Direita (hoje boulevard Doutor Braguinha), e que seria um “capoeira ‘desconjuntado’”. É esta a nota:
Assisti aos festejos do 13 de Maio. Estiveram assim... Parabéns ao Daniel de Moraes, a quem se deve o não ter ficado “em branco”, a data. Vendo passar os manifestantes, conduzidos pela palavra do Ramiro Parreira, vieram-me á mente scenas dos 13 de Maio de alguns annos atraz, uns 20 talvez, época em que tínhamos aqui diversos oradores fogósos entre os homens de côr. Destes o mais enthusiasmado e verborrhagico era o popular Benedicto Gostoso, mulato escuro, physionomia viva, cabello encaracolado e repartido “de banda”, capoeira “desconjuntado” e barbeiro de profissão.